segunda-feira, 19 de maio de 2014

Olho Nu

(Brasil, 2014) Direção: Joel Pizzini. Com Ney Matogrosso.



Por João Paulo Barreto

A importância de um artista como Ney Matogrosso em dias de hipócritas padrões ditos corretos em nossa sociedade é imensurável. Olho Nu, documentário impar dirigido por Joel Pizzini acerta ao focar a relação do cantor em seu peso de contestação na música brasileira. Quando Ney afirma que teve sorte ao ter sido filho de um pai militar, pois essa seria sua primeira transgressão, todo o entendimento de sua função como músico nos é preenchido. É percebendo essa atitude transgressora em um Brasil refém de lambe-botas homofóbicos que se nota sua importância.

Voltando no tempo 43 anos, vemos aquele homem magro, esbelto, com voz singular, pintura pesada no rosto e collant a rebolar enquanto executa sua performance musical em um palco. 1971 era o ano. Militares estupram o país com atos institucionais. A censura tenta de todas as formas nos cegar. Esse é o cenário onde a subversão não era tolerada e muito menos uma postura como a daquele homem.  Com suas apresentações, solo ou com os Secos e Molhados, Ney Matogrosso permitia que se percebesse que não era necessário se render aos ditos padrões corretos de comportamento. Como ele mesmo afirma hoje, no auge dos seus dignos setenta anos de idade, transgredir era seu lema.

Ney aos setenta: a plena  maturidade de um artista
Pizzini traz para Olho Nu uma estrutura diferenciada de documentário. Não se rende ao modo fácil de cabeças falantes em entrevistas e mais entrevistas para preencher o pouco mais de 100 minutos da obra. De modo dinâmico, prefere apresentar seu objeto de estudo através do modo deste se refugiar hoje, ao curtir sua terceira idade, recluso, no silêncio da casa de campo. Inserindo a voz over do próprio Ney, contando suas experiências de vida através de palavras e em imagens de arquivo, o longa cria um ritmo que se justapõe ao equilíbrio de sua afinação, fazendo o espectador flutuar enquanto é conduzido por aquela trajetória de vida.

Os depoimentos de Ney são quase que exclusivamente retirados de imagens de arquivo. Suas opiniões permanecem atuais, mesmo tendo sido ditas há 40 ou 30 anos. Quando o próprio cantor afirma não mais ter alguma daquelas opiniões, o faz salientando uma possível ingenuidade que somente os anos de estrada lhe foram capazes de equilibrar com a maturidade. Deste modo, Olho Nu é como um acertar de contas, um ensaio, no qual Ney procura quase que exorcizar seus fantasmas, por mais clichê que tal colocação possa parecer. É um reencontro. Um fazer de pazes entre o jovem e o maduro Matogrosso. O rapaz de sorriso fácil que parece ter se transformado no idoso de feições duras, marcadas por anos não apenas de sorrisos, sucessos e abraços, mas de muita dor.

Secos e Molhados: artistas que sabem a que vieram 


A dor de uma vida na qual ele mesmo se considera sobrevivente também é apresentada. Ao se autodeclarar assim, Ney fala a respeito do período em que chegou a ir ao cemitério três vezes por semana, quando a AIDS ainda era uma incógnita e as pessoas morriam sem pouca ou nenhuma esperança. Nas imagens de arquivo, sorrisos de um Cazuza que não conseguiu escapar daquela epidemia entristece quem assiste. E a dura reflexão de Matogrosso ao afirmar que não duvida que aquele vírus possa ter sido criado de modo proposital encontra sua justificativa na pertinente comparação com a loucura da bomba atômica. E, claro, a cena é brindada com Rosa de Hiroshima, em sua icônica apresentação com os Secos e Molhados.

Olho Nu tem em seu título justamente a intenção de seu mérito principal: aquele que busca tornar aquele artista facilmente discernível, mas que, por ainda mantê-lo como um segredo em suas próprias dores e idiossincrasias, deixa apenas ao espectador a conclusão de quem é aquele homem.

E qual seria a graça se todas as respostas nos fossem dadas, não é mesmo?


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