segunda-feira, 26 de março de 2018

Entrevista - Camele Queiroz e Fabricio Ramos



Com uma vasta experiência na direção de curtas metragens, sendo o mais recente deles, Muros (2015) premiado no Feciba – Festival de Cinema da Bahia e no Kinoforum – Festival Internacional de Curtas Metragens de SP, a dupla de cineastas Camele Queiroz e Fabricio Ramos traz para Quarto Camarim, seu primeiro longa, uma delicada construção de personagem. Trata-se do reencontro entre sobrinha e tia, após vinte e sete anos sem qualquer contato. A sobrinha em questão, a própria Camele, junto ao co-diretor e roteirista Fabricio Ramos, apresentam para o espectador a figura de Luma Kalil, uma independente comerciante, dona de um salão de beleza que é, também, travesti e artista performática. Neste reencontro, os laços que ambas possuem são refeitos através de lembranças e olhares adiante. Trata-se não de um inflamar de velhas feridas familiares, mas de um belo retrato da aceitação e do respeito pelo outro.

No filme, contemplado no programa Rumos Itaú Cultural 2015-2016, a construção da figura de Luma para o espectador é feita de forma gradativa. Nós a conhecemos através de sua força, do modo como sua autoafirmação foi condição principal para que ela conseguisse se impor diante de qualquer violência física ou mental. O que vemos ao final é o equilíbrio de uma mulher segura de si. Nesta entrevista, Camele e Fabricio falam um pouco dessa construção fílmica que resultou em Quarto Camarim.

O filme será exibido amanhã, na Sala de Arte da UFBA, às 19h, com entrada franca. A sessão tem organização da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, e contará com debate mediado pelo professor da UFBA, Djalma Thüler, que coordena o Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade, com a participação da protagonista e dos realizadores. 

Luma Kalil em cena de Quarto Camarim

Camele, há um impacto emocional marcante no modo como o seu reencontro com Luma, sua tia, é gradativamente construído para o espectador. Como foi lidar com isso sem deixar que esse mesmo impacto emotivo viesse por qualquer razão prejudicar a construção do seu filme?

CAMELE - De fato, o impacto emocional marca a nossa aproximação. Mas, durante todo o tempo em que pensávamos Quarto Camarim, esse impacto emocional constituía a própria substância do filme. Por isso a minha decisão delicada de filmar já a aproximação, e não de tentar me aproximar de minha tia para depois construir um filme. Essa escolha me trouxe exigências. Durante todas as fases do processo, em muitas situações, era necessário dar tempo para deixar as emoções decantarem, em outras, era preciso valorizar justamente o calor do momento. Não só durante as filmagens, em que as decisões de ligar ou desligar a câmera, ou de propor à Luma uma cena mais ou menos construída, tinham que ser pensadas tanto no nível de minha relação com minha tia, quanto no da construção fílmica. Mas também no processo de montagem, durante o qual a distância de Luma era apenas geográfica, mas nossa relação continuava frequente, trazendo novos impactos emocionais, enquanto eu tinha que retomar as experiências vividas e registradas por nós, buscando dar a elas um sentido capaz de compor a estrutura do filme. Nesse sentido é que o impacto emocional de nossa aproximação constitui a própria substância do filme.

Neste mesmo aspecto citado anteriormente, Quarto Camarim acerta no tom dos depoimentos de Luma sem ceder para o piegas, para as lágrimas ou para qualquer maneira de manipular o espectador dentro da emoção. E este poderia ser um risco, uma vez que os diálogos do filme são inseridos de forma natural. Como vocês trabalharam esse risco?  

FABRICIO - Sabíamos do risco o tempo todo. Em sua forma, o filme insinua esses riscos, próprios de uma abordagem documental que marca o nosso estilo e cujo tema é a relação entre duas sensibilidades que se encontram com todas as suas diferenças, mas ligadas por laços familiares e contextos complexos. Em sua narrativa, entretanto, os riscos são mais do que insinuados: certas lacunas narrativas e algumas soluções estéticas que utilizamos resultam do desafio de converter o inevitável impacto emocional que o filme traz em si mesmo, em um outro tipo de impacto no espectador, que não substituísse o lugar do impacto emocional, mas que, junto a ele, estimulasse uma relação incomum do espectador com o filme, que lhe falasse mais alto no nível da sensibilidade e da reflexão, mas sem abrir mão da emoção.

A co-diretora Camele Queiroz em cena com Luma Kalil 


Camele e Fabricio, na construção do roteiro, percebemos uma casualidade do encontro, mas, do mesmo modo, o aspecto documental planejado se faz presente. Principalmente na cena em que Camele conversa com Luma no quarto, sobre a forma como o filme foi imaginado. De que modo vocês buscaram esse equilíbrio entre o improviso e as cenas pensadas para o roteiro?

FABRICIO - Uma dupla noção conduziu o modo como buscamos equilibrar as cenas pensadas e aquelas que resultavam do instante e do improviso: a nossa noção do que é cinema e, em relação com ela, a nossa ideia de política. Ao mesmo tempo em que lidávamos com a nossa percepção do teor dramático de Quarto Camarim, que vem das tensões da relação entre tia e diretora, tínhamos que lidar com a carga política inerente ao tema do filme, que vem do fato de Luma ser travesti. A forma como pensamos o cinema que fazemos orientou a busca desse equilíbrio entre cenas pensadas e improvisadas. O cinema pode ser muita coisa, há vários cinemas, mas mantemos viva sempre essa visão do cinema como arte, mesmo filmando sob um método predominantemente documental. Essa visão remete à, para nós, desimportante controvérsia em torno da relação entre o que é documentário e o que é ficção no cinema, ou entre arte e entretenimento. Talvez tenha sido Riccioto Canudo, lá em 1911, um dos primeiros teóricos a defender a condição de arte do cinema, dizendo que “no cinema, a arte consiste em sugerir emoções e não em relatar fatos”. Em Quarto Camarim, que começa com uma cena pensada na qual se ouve um poema, buscamos subverter isso e sustentar uma visão “poética” (dramática) dos próprios acontecimentos com os quais nos deparamos. Porque, para nós, não basta reproduzir através das imagens o que vimos ou vivemos no “real”, mas buscamos expressar algo sobre a vida a partir de nossa própria visão da vida, de nossa ideia do que é arte e do que é cinema, e de nossas visões de mundo políticas, éticas. Pela mesma razão, evitamos construir discursos mesmo quando abordamos temas eminentemente políticos. Mesmo que os discursos estejam lá de alguma forma, o nosso esforço é o de atingir, em algum grau, a sensibilidade de quem vê o filme. Claro que há uma boa dose de risco nisso. Esse risco participa do desafio que nos anima a fazer um filme como “Quarto Camarim”, mas, em nosso trabalho, nós temos sempre em mente uma conjunção que se resume em duas palavras: simplicidade e sensibilidade.

Camele, Quarto Camarim trata de uma história extremamente pessoal para você e sua família. Houve em algum momento qualquer insegurança em revisitar fatos que poderiam abrir velhas feridas para você e sua família?

Do meu ponto de vista como diretora pessoalmente envolvida na história, percebo mais o desafio diante da incerteza da vida, do que o sentimento de insegurança diante dos desafios. Agora, claro que eu tinha plena noção de que eu estava mexendo com o passado de minha família e, eventualmente, provocando um novo presente nas relações, que eu não podia saber como seria. Tendo em vista, por exemplo, o fato de Luma ser travesti, isso não nos induz a certas conclusões sobre as razões do rompimento entre ela e meu pai? Diante das histórias que me contam, de ambos os lados, as coisas não são tão simples. Aliás, eu mesma não sabia direito as razões de meu pai ter se afastado de Luma, visto que foram amigos, até mesmo quando Luma já fazia shows, e de repente romperam definitivamente quando eu ainda era criança. Quando decidi procurar Luma, ainda sem ter o projeto de fazer disso um filme, resolvi assumir a minha responsabilidade e propor que meu pai assumisse a dele, e que Luma assumisse a dela. Quando me veio a ideia de transformar a busca e o possível encontro em um filme, ambos, afinal, toparam participar dele. Quarto Camarim, como filme, está aí, mas a vida e as relações continuam. As inseguranças também, as minhas e, talvez, as deles.

A trajetória que Luma teve, passando por diversas cidades, reconstruindo a própria vida do zero diversas vezes, falando acerca dos atritos familiares e descrevendo sua coragem de modo preciso quando usa o fato de ter “colocado peito” e a ação de sair na rua após isso como definidor de sua força interior. Diversas falas e momentos salientam o pulso forte que essa mulher possui. No roteiro, como vocês procuraram construir a força dessa personagem para o espectador?

FABRICIO - A força da personagem vem da própria Luma e nós buscamos valorizar isso no filme. Em termos de roteiro, o maior desafio foi incorporar ao filme as hesitações e tensões de uma relação frágil que se iniciava e que tinha o agravante da distância geográfica. À medida que fomos construindo o filme, era mais a força de Luma que nos fazia pensar e repensar o roteiro, do que nós pensando num roteiro que valorizasse a força de Luma.

Camele em cena de Quarto Camarim

Essa força de Luma, inclusive, é colocada em evidência logo em seus primeiros depoimentos e conversas com Camele. Isso depois de a conhecermos somente pela voz e pela insegurança em não querer participar do filme. Quando a vemos entrar em seu próprio salão de beleza ou cantar em sua performance, é como se o filme confirmasse tal força. Acabou sendo algo que o acaso ajudou a construir, uma vez que vocês não imaginavam essa desistência e volta dela ao projeto.  Em que momento vocês perceberam que essa construção narrativa relacionada ao mostrar da força da protagonista teria tamanha eficiência?

CAMELE - Isso tem a ver com a forma como nós fazemos nossos filmes, que lidam com aspectos da vida e personagens reais. Claro que Quarto Camarim foi especial: por eu ser diretora e ao mesmo tempo viver a história, pude sentir na pele a intensidade do drama quando, por exemplo, Luma desistiu do filme. Por um momento nós nos vimos diante do ingrato desafio de fazermos um filme não mais sobre o encontro, mas sobre um desencontro. De repente, por razões dela mesma, Luma retorna ao filme. Diante da hesitação de Luma, que mostra sempre um caráter autônomo, e da reviravolta, nós percebemos que a nossa relação com ela já vinha sendo efetivamente mediada pelo próprio filme, ainda que isso não fosse o planejado. Essa mediação da relação pelo filmeacabou se impondo como parte constitutiva da narrativa.

Ao inserir o depoimento de um dos irmãos de Luma, e a forma como ele parece se preocupar com o que vai dizer, em contraste com o pulso firme das falas da protagonista, há uma percepção do espectador para a segurança que aquela mulher possui. Do mesmo modo, sua preocupação com a própria mãe, em paralelo à fragilidade que vemos da idosa. Quarto Camarim possui diversas rimas temáticas neste sentido, que nos ajudam a perceber quem é Luma. Vocês podem falar um pouco dessas opções de construção temática?

CAMELE - Eu mesma, enquanto sobrinha de Luma, fui descobrindo-a aos poucos e, ao mesmo tempo, já enquanto diretora, comecei a pensar, junto com Fabricio, em como mostrar isso no filme. Daí começamos a definir, especialmente no processo de montagem, soluções narrativas e estéticas que transmitissem ou, pelo menos, sugerissem no filme essa experiência de desbravamento, tanto da vida quanto do próprio cinema.

Há uma imprescindível discussão que o filme traz quando aborda diferenças de classes, preconceito em relação a questões de gênero e liberdade de expressão, e isso sem ser panfletário, inserindo tais mensagens de modo poderoso nas falas de Luma, principalmente quando esta fala dos momentos de fúria que teve com os irmãos. Como se deu a abordagem desses temas na concepção do roteiro e no alcance do resultado final?

FABRICIO -  Quarto Camarim mostra um reencontro entre duas sensibilidades, de diferentes gerações e histórias de vida. O fato de Luma ser travesti traz à tona essas dimensões sociais e políticas complexas no campo da sexualidade, das diferenças de classe, dos afetos familiares, do preconceito violento e de questões de gênero. Mas a abordagem escolhida por nós, que se situa no limite das relações entre estética e política, propõe ao espectador uma experiência cujo sentido e importância ele mesmo deverá procurar. Preferimos não estabelecer de antemão ou julgar a importância que o tema do filme evoca. Mas temos consciência de que, por um lado, a força dramática do filme reside no fato de Luma ser travesti e ser minha tia, mas por outro, essa força vem também da expressão pessoal de minhas inquietações e das escolhas formais às quais nós recorremos para expressá-las, nublando as fronteiras entre a vida e a arte, entre o documentário e a ficção, entre o fato e a memória. São os impactos na sensibilidade que, historicamente, transformam as bases da sociedade, seus valores, suas verdades, para quem sabe, trilharmos o caminho de um mundo menos violento e mais aberto às diferenças. Todas as nossas escolhas formais, narrativas e estéticas, buscaram dirimir os discursos e valorizar as vivências das próprias personagens. Tudo isso reunido constrói um filme que só pode ser importante na medida em que ele possa causar no espectador uma intensidade de sentimento aliada a uma vontade de reflexão.

Entrevista publicada originalmente em A Tarde, dia 26/03/2018





Mostra Tiradentes 2018 - Baixo Centro é o Melhor Filme da edição


Após uma semana intensa de exibição de curtas e longas metragens, homenagens, oficinas, debates e performances, a 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes chegou ao fim no último sábado. Baixo Centro, filme mineiro dirigido por Ewerton Belico e Samuel Marotta foi eleito pelo Júri da Crítica o Melhor Longa Metragem da Mostra.

Ao focar na trajetória de personagens da periferia de Belo Horizonte a partir de uma óptica que coloca o espectador dentro daquelas realidades, o filme traz uma pertinente reflexão acerca das restritas opções de vida que aquelas pessoas possuem. Cada personagem em Baixo Centro segue em um relato de suas existências, relembrando seus passados, refletindo acerca de seus futuros e perpassando por um presente que parece colocá-los em uma rotina de contagem regressiva. As luzes de BH ao fundo dos emblemáticos quadros dos subúrbios da metrópole parecem iluminar aquelas vidas como uma espécie de presságio para as luzes das sirenes que abreviam uma delas ao final.

Equipe de Baixo Centro no momento da premiação

Ao receber o troféu, a dupla de cineastas leu uma carta escrita pela Associação de Trabalhadores e Trabalhadoras do Cinema Independente de Minas Gerais. Direcionada ao governo do estado, o documento solicitou do executivo uma maior participação da classe audiovisual nos processos de elaboração de editais de financiamento e distribuição de verba para produção. “Entendemos que tais transformações só serão possíveis com um instrumento permanente, regulado por lei e criado com a participação de toda a sociedade. Acreditamos que o maior desafio do Brasil atual é devolver ao povo o seu poder de participação”, disse Ewerton Belico.

Na categoria Curta Metragem, o Júri da Crítica premiou a produção do Rio de Janeiro, Calma. Dirigida por Rafael Simões, o curta aborda em um cenário de destruição questões cruciais como moradia e perseguição de um Estado cada vez mais excludente.

Em um momento de muita emoção, a atriz Julia Katharine recebeu o Prêmio Helena Ignez para destaque feminino. Protagonista e roteirista de Lembro Mais dos Corvos, filme de Gustavo Vinagre, a atriz dedicou, entre lágrimas, o troféu a todas as mulheres que lutam por seu espaço na vida e no trabalho.

Matéria originalmente publicada em A Tarde: http://atarde.uol.com.br/cinema/noticias/1931789-mostra-de-cinema-de-tiradentes-2018-premia-filme-baixo-centro?status=1&nocache









Mostra Tiradentes 2018 - Bandeira de Retalhos, de Sérgio Ricardo


Após quarenta anos, o veterano Sérgio Ricardo
reassume a direção de cinema




Artista multifacetado que se envereda com o mesmo esmero pela pintura, composição musical, literatura e, agora, após um hiato de quase quarenta e cinco anos, de volta ao cinema, o octogenário Sérgio Ricardo apresentou na edição 2018 da Mostra de Cinema de Tiradentes seu mais recente filme, Bandeira de Retalhos. Baseado na história real de resistência dos moradores do Vidigal, o longa aborda a saga das pessoas que, no final dos anos 1970, se rebelaram contra as ordens do governo do Rio de Janeiro que visavam a derrubada dos seus barracos. A justificativa era por conta de uma suposta localização em zona de risco de desabamento. Porém, logo descobriu-se se tratar de um golpe da especulação imobiliária.
O longa é definido pelo próprio Sérgio como “cinema de mutirão”. “Esse é um projeto que eu possuía desde a década de 1970. Nunca tive recursos para filmá-lo. Na verdade, no começo do anos 1990, cheguei a ter a possibilidade de realizá-lo, mas o infeliz do presidente da República na época acabou com a Embrafilme”, relembra Sérgio. Foram precisos mais 27 anos para que o trabalho saísse do papel. Mais do que isso, foi necessária a força de um mutirão de pessoas, como bem classifica o diretor, para que isso acontecesse. A produção foi orçada em três milhões de reais. No entanto, a equipe conseguiu a façanha de realizá-lo com apenas 100 mil reais, o que, para muitos projetos, não custeia nem a alimentação durante períodos de filmagem.

A produção foi realizada a partir da integração da ONG e grupo de teatro Nós do Morro, oriundo do próprio Vidigal (a história chegou a ser representada nos palcos, inclusive). Todos os atores, além de participar de entrarem no filme como elenco, participaram do processo de construção dos cenários, composto por casas de madeira a representar a favela de quarenta anos atrás, sendo que muito dos itens utilizados na construção das paredes eram alugados. “Nós tínhamos que ter o maior cuidado com as madeiras, pois além de precisar montar e remontar as casas, já que os materiais eram os mesmos, ainda tínhamos que devolver após o uso”, relembra o cineasta entre sorrisos. Principal apoiador do projeto, o Canal Brasil foi quem entrou na empreitada com o suporte dos cem mil reais. Quantias menores forma levantadas através de financiamento coletivo, que contou com o apoio de nomes como Chico Buarque e do cineasta Beto Brant, entre outros.

O cineasta durante debate na Mostra Tiradentes 2018

“UM SR. TALENTO”

Sérgio Ricardo, para a geração mais nova, pode soar como um nome não muito conhecido. Seu último longa de ficção como diretor foi A Noite do Espantalho, de 1974. No entanto, esse senhor de 85 anos teve sua trajetória de vida mesclada com a da cultura de resistência do Brasil. Iniciou sua carreira como músico em São Paulo, mas foi na noite carioca que se firmou como pianista e compositor, tocando com diversos nomes da Bossa Nova. Durante os anos 1960, filmou seu primeiro curta-metragem, O Menino da Calça Branca. Em 1964, seu longa de estreia, Esse Mundo é Meu, foi lançado durante os conflitos de rua decorrentes do golpe militar. No mesmo ano, assinou a emblemática trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol, iniciando uma parceria com Glauber Rocha e que continuaria com o marco de 1967, Terra em Transe. Além de participar das trilhas de marcos do cinema, Sérgio marcou presença nos populares festivais de música, dentre eles o da Record, onde, diante das vaias que o impediram de cantar, destruiu o violão no chão do palco, atirando-o contra a plateia, momento dos mais simbólicos da música nacional e registrado no documentário Uma Noite em 67.

CINEMA NOVO

Parceiro de Glauber nos filmes citados, Sérgio mantém uma proximidade com os representantes do Cinema Novo. Dentre eles, o baiano Antonio Pitanga, cuja atuação dirigiu em Esse Mundo é Meu (1964) e Juliana do Amor Perdido (1968). A parceria voltou a acontecer agora em 2017. “O Pitanga é, antes de tudo, um grande amigo. Além de um talento assombroso. Sempre penso nele em qualquer projeto que me envolvo. E sei que se Glauber estivesse vivo, faria o mesmo”, afirma.  Sobre o movimento cinematográfico, Sérgio explica ser fiel às próprias observações estéticas. “Em meus filmes, eu procuro ser sempre direto, criar uma narrativa mais cara a cara para poder revelar as necessidades do povo brasileiro, que está cada vez mais complicada. Por isso, prefiro ficar com meus amigos do Cinema Novo e com o que absorvi deles”, salienta.
Seguindo esse perfil de reflexão dentro da sétima arte, algo que o acompanha desde seus primeiros filmes, para Sérgio, a postura do cinema e do audiovisual como um todo, deve fugir de uma presença meramente lenitiva. “Precisamos usar a arte como uma linguagem de transformação. O negócio é atuar, é fazer a arte atuar. A função da arte é transformadora. Não é uma coisa de vitrine de gracinhas. Não é só gracinha, não. É uma arma, também, entendeu? De combate ao que está existindo aí. Ou você usa essa arma ou então desiste de fazer arte. Arte é coragem. Se você não tem coragem de encarar sua realidade, sai fora, velho. Vai fazer outra coisa”, pontua com firmeza. Se muitos da geração atual ouvissem as palavras dos mestres...

Matéria publicada originalmente em A Tarde, dia 28/01/2018





Mostra Tiradentes 2018 - Navios de Terra, de Simone Cortezão

Tragédia de Mariana é destaque em 'Navios de Terra', 
exibido em Tiradentes



O mar vermelho que abre Navios de Terra, longa de estreia de Simone Cortezão, choca pela lembrança recente dos resultados da tragédia ocorrida com o Rio Doce em 2015, ocasião em que uma barragem da Vale cedeu, devastou municípios, matou pessoas e arrasou com todo ecossistema local. O resultado da chegada dos dejetos ao mar, após destruição total do rio, abre a proposta fílmica de reflexão trazida pela cineasta de forma a anunciar que tal fato não deve ser esquecido. E não há como. Suas marcas são deveras dolorosas para se deixar cicatrizar.

No filme, o primeiro longa a abordá-la, a tragédia não funciona como pano de fundo. Mas é trazida como referência dos acontecimentos atrelados ao modo predatório com que a mineração age nos locais de exploração, visando o lucro da exportação, passando por cima de povos e deixando para trás os traumas. É como uma sombra a perseguir seus personagens e o espectador, ciente de sua lembrança. ”A história de Navios de Terra já estava escrita há muito mais tempo. Bem antes do que aconteceu em 2015, em Bento Rodrigues. Mas inserir a tragédia no filme era inevitável”, afirma a diretora durante o debate na Mostra Tiradentes de Cinema. A reflexão proposta por seu roteiro, no entanto, foca na mudança física das montanhas entre continentes, algo que leva décadas de mineração para acontecer, mas que os resultados negativos são sentidos diariamente pelas pessoas que vivem ao redor desses lugares.

Uma dessas pessoas é Rômulo (vivido pelo ator Rômulo Braga), um ex-operário da mineração que, agora, trabalha como marinheiro nos navios de carga a levar containeres com minérios extraídos das montanhas brasileiras em direção ao oriente. Soturno, ele reflete em silêncio acerca das mudanças que seu trabalho propõe. Físicas e psicológicas. Afetado por elas, resolve buscar as montanhas do outro lado, no destino oriental. Na viagem de dias, ele troca relatos e experiências com a pequena tripulação do cargueiro. Dentre eles, um jovem de ascendência oriental que lhe fala acerca das montanhas no país de destino. Obstinado em conhecê-las, Rômulo segue aquele caminho de transição, algo que simboliza do mesmo modo a mudança física das montanhas entre um continente e outro.

Rômulo Braga no papel do atormentado ex-minerador e atual marinheiro

Filmado com não atores, tripulantes reais da embarcação, o filme traz momentos como o diálogo entre um deles e o personagem de Rômulo. Na conversa, um ataque de piratas durante a passagem do homem pela costa da África é trazido à tona. ”Ele vieram, causaram o terror, levaram tudo que podia e nos deixaram apenas com a roupa do corpo”, como o homem de meia idade enquanto mostra fotos do ocorrido ao jovem marinheiro. “Foi um diálogo, um relato real que ele quis nos contar. Lembro-me de não querer exibir as fotos violentas do ocorrido, pois a intenção não era de chocar. Mas o fato de poder compartilhar esse fato no filme marcou bastante”, relembra Simone.

O filme acaba, assim, gerando uma eficiente metáfora para a tragédia acontecida em Bento Rodrigues. A pilhagem, o terror, a retirada de tudo, a ação predatória acontecida durante anos pela mineração só se equipara com a realizada pelos piratas que invadem o navio. Tanto em meio ao oceano, quanto durante décadas de irresponsáveis e criminosas ações burocráticas, o crime é o mesmo. A violência é a mesma. As sequelas, dolorosamente iguais em ambos exemplos.


Mostra Tiradentes 2018 - Cinema baiano presente


Com três curtas metragens e o longa de abertura, produções baianas
se destacaram na mostra mineira de cinema


Cartazes de Mamata, de Marcus Curvelo, e Peio Vazio, de Leon Sampaio e Yuri Lins



O audiovisual baiano esteve bem representado na edição 2018 da Mostra de Cinema de Tiradentes, que aconteceu em janeiro na cidade mineira. Além da abertura do evento, com o premiado Café com Canela, de Glenda Nicácio e Ary Rosa, a Bahia conta com o curta Mamata, um esmero da desconstrução dos símbolos relacionados à falsa sensação de patriotismo e de democracia que vivemos. O filme foi agraciado com o prêmio da crítica no Festival de Brasília do ano passado, além de conceder o candango de melhor ator a Marcus Curvelo pela sua interpretação do protagonista, Joder, um videomaker em busca de emprego e da possibilidade de deixar o Brasil. Dirigido pelo próprio Curvelo, a produção do Coletivo Urgente Audiovisual – CUAL é uma ode à desesperança de uma geração desiludida diante da inércia e do retrocesso que o país apresenta em sua política pós golpe de 2016. Ao unir o humor e as referências à cena política, Curvelo acerta em cheio com uma ácida tragicomédia, mas que causa reflexão.  “Mamata, na verdade, é uma comédia de desespero. Algo que se baseia no rir para não chorar. Há uma coisa de crônica, de catarse no personagem, mas também existe uma auto-crítica, uma vez que ele não faz muito para tentar melhorar aquela situação. Tudo o que ele busca é fugir”, afirma o diretor.

Co-dirigido pelo baiano Leon Sampaio, juntamente com o pernambucano Yuri Lins, Peito Vazio é outra produção que será exibida na Mostra. Sobre ela, Leon faz pertinentes observações acerca do diálogo que o seu filme possui com o dirigido por Marcus Curvelo. Do mesmo modo que Mamata, Peito Vazio apresenta um protagonista em conflito com questões internas que acabam por refletir em seu pensamento acerca do momento em que vive o Brasil. “No roteiro, eu e Yuri buscamos abordar a ideia da crise e do desamparo como uma possibilidade de afeto. Existe uma questão da indeterminação, de sujeitos que precisam se reconstruir. O personagem principal passa por uma crise pessoal, algo de relacionamento em um plano subjetivo individual, mas que acaba se reconstruindo a partir de um plano coletivo”, explica Leon. Trata-se de dois curtas que dialogam bastante, sendo que acabam por se diferenciar por conta dos perfis que almejam em seus resultados finais. “Enquanto Mamata aponta para uma melancolia debochada, mas não menos reflexiva, Peito Vazio é um curta que segue um perfil mais sério, sendo que nosso maior desafio foi a não romantização do protagonista”, afirma Leon.

DISCUSSÃO GEOPOLÍTICA E IDENTITÁRIA

Oriundo de Barreiras e residente na cidade de Luís Eduardo Magalhães (antiga Mimoso do Oeste), o cineasta Michel Santos traz uma discussão geopolítica e de identidade de um povo para Latossolo, impactante curta que consegue, sem diálogos,  ilustrar para o espectador o impacto que a fugaz transformação urbana de uma cidade pode causar em seus moradores em termos de sensação de não-pertencimento. “Em uma cidade muito jovem como Luís Eduardo Magalhães, cujo crescimento está pautado basicamente no agronegócio, o que existe entre os moradores e o município não é uma relação afetiva, uma vez que não há a sensação de pertencimento, de memória de um passado atrelado ao lugar”, explica Michel.
Em seu filme, o diretor aborda o fato de que, por funcionar unicamente na relação da produção agrícola, não há um pensar na cidade como algo que mereça uma elaboração, um pensamento voltado para o desenvolvimento do município como algo voltado para seus habitantes, principalmente em termos culturais. “Isso acaba fazendo com que o lugar se torne uma ‘não-cidade’, justamente por não possuir essa identidade junto ao seu povo”, afirma. Latossolo se relaciona de modo pertinente com os outros curtas exatamente por abordar as relações humanas subjugadas diante de um modelo de desenvolvimento que não prioriza as pessoas. “Quando se coloca esse progresso desenvolvimentista como prioridade, o que é afetado são as relações sociais, ambientais e culturais. É essa reflexão que o filme busca trazer”, complementa.



INTERIORIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL

No longa de abertura da Mostra Tiradentes, Café com Canela, de Glenda Nicácio e Ary Rosa, a questão das relações afetivas são prioridades, sendo que a identidade com as cidades de Cachoeira e São Felix é plena. “Como já se diz por aqui, não é a gente que escolhe Cachoeira, mas Cachoeira que nos escolhe”, brinca o co-diretor e roteirista, Ary Rosa.  “Nós nos propusemos a colocar a cidade em primeiro plano. Pensamos as duas cidades como uma representação. Algo forte, mesmo. Como um personagem e com suas personalidades”, complementa.  Encontro e afeto são palavras que definem bem o contato entre o espectador e a obra. Na triste história de Margarida (Valdinéia Soriano), uma mãe a se recuperar de um passado traumático, o reencontro com Violeta (Aline Brunne), uma de suas ex-alunas, lhe dá forças para suplantar a tragédia.

“Temos uma preocupação em pensar na interiorização do cinema em busca de outros pólos, um cinema que vá para além do atual eixo Rio-SP.  Em Café com Canela, buscamos fazer um filme de identidade, uma obra do interior, com o interior e para o interior, também”, salienta Ary,  Observando a trajetória de sucesso do longo, é notório o objetivo alcançado.



Matéria publicada originalmente em A Tarde, dia 21/01/2018



Mostra Tiradentes 2018 - Homenagem a Babu Santana


Pensar em homenagem é algo que me emociona por saber que a luta é dura. Isso é um oxigênio para minha carreira” 



O ator Babu Santana em seu lar, no Vidigal

Em Café com Canela, Babu Santana, rosto marcante da recente geração de atores brasileiros, pôde reencontrar suas origens. Sim, com o filme de Glenda Nicácio e Ary Rosa, mais do que conseguir sair de um padrão de personagens violentos, o jovem oriundo do Vidigal, notória favela do Rio de Janeiro, voltou a Cachoeira e a São Felix, cidades às margens do rio Paraguaçu onde nasceram seus avós, e que ele chegou a visitar durante a infância. “Lembro-me de chegar a Cachoeira para iniciar as filmagens, o pessoal me deixar na pousada e eu me perguntei se, sozinho, ainda conseguiria chegar à casa onde moravam meus parentes”, relembra Babu durante o papo por telefone. Em sua voz, é perceptível um ar de saudosismo. “Quando sai, dobrei a esquina e vi a ponte. Cara, pareceu que tinha sido ontem. Consegui chegar direitinho até lá”, diz entre sorrisos.


Entre o resgate dessa memória afetiva e a criação de um personagem distante dos vividos por ele em filmes como Cidade de Deu, Batismo de Sangue e Estômago, dentre diversos outros, Café com Canela proporcionou justamente uma quebra de estereotipo. Com Ivan, um médico  homossexual, casado com Adolfo (Antonio Fábio), um experiente e mais velho agente de viagens aposentado, Babu capta uma sensibilidade que difere de qualquer personagem que já tenha feito antes. “Eu queria interpretar alguém justamente como o Ivan, o personagem escrito pelo Ary. E essa minha vontade acabou reverberando até ele, que me convidou”, afirma.

Babu em cena de Café com Canela

Em 2018, Babu completa vinte anos como ator profissional. Teve sua trajetória homenageada na Mostra Tiradentes, que conta com Café com Canela como longa de abertura e que aconteceu na cidade mineira em janeiro. “Brother, quando eu penso nesse negócio de homenagem, me vem à mente todos os perrengues, toda a luta dura que é tentar viver de atuação aqui no Brasil. Principalmente para o povo miscigenado que busco representar. Então, para mim, isso é como uma medalha, um oxigênio para minha carreira”, salienta.

Após viver com impressionante fidelidade o cantor Tim Maia na cinebiografia lançada em 2014, e deixar a violência para o personagem de Lázaro Ramos no impactante Mundo Cão, filme de 2016, Babu Santana reafirma sua versatilidade na sensível obra baiana premiada no festival de Brasília do ano passado e, agora, com estreia internacional confirmada no prestigiado festival de Rotterdam, na Holanda.

Confira o papo também publicado no Jornal A Tarde. 

Babu, como se deu o convite para sua participação em Café com Canela?

Cara, foi uma coisa de cosmos, sabe? Realmente, cósmica. O Ary (Rosa) e a Glenda (Nicácio, diretores do filme) estavam fazendo um trabalho em alguma cidade do interior. No lugar onde eles estavam hospedados só pegava dois canais na TV. Em um deles passava um programa da Marília Gabriela no qual eu era o entrevistado. Ela me perguntou o que eu ainda gostaria de fazer no cinema, algo que me desafiasse. Lembro-me de ter respondido que queria interpretar um personagem homossexual. E esse pedido acabou tocando o Ary e a Glenda, lá no sertão da Bahia. O Ary conseguiu entrar em contato com um grupo de teatro que eu fiz parte, o Nós do Morro. Uma amiga minha de lá me colocou em sintonia. Os dois me mandaram um roteiro e eu me apaixonei de cara pela história que eles queriam contar em Café com Canela.

E como foi essa coincidência de a história se passar justamente na região do recôncavo de onde surgiu sua família?

Foi uma surpresa, mesmo. Quando li o texto, senti que era algo especial. Era um roteiro gostoso de se ler.Só que em momento algum eu me antenei que se passava em Cachoeira, sabe? Na minha cabeça, as cenas seriam rodadas em Salvador. Foi somente na semana anterior a minha viagem foi que eles me falaram que rodariam tudo em Cachoeira e São Felix. Lembro do Ary me perguntando se eu conhecia a região. “Não acredito. Vocês estão de brincadeira comigo”, respondi. Gente, foi muita coincidência (risos).  Foi por isso que eu te falei que me senti como parte de algo cósmico. Por conta de uma entrevista com a Marília Gabriela na qual eu protestava: “por que eu não posso fazer certos tipos de personagens? Por que tenho que ficar preso a estereótipos?” Todo esse meu questionamento acabou reverberando e foi ecoar justamente no recôncavo baiano, onde vivem Ary e Glenda, e de onde minha família, minha bisavó, meu avô, meu pai, enfim, de onde, de certa forma, eu surgi, mesmo tendo nascido no Rio de Janeiro. Isso é pura magia, cara. Algo cósmico, mesmo.

Já com diversos filmes na bagagem e muita experiência em sets, como foi a experiência de participar do primeiro longa da dupla de diretores?

Desde o momento que eu cheguei a Cachoeira, tudo foi mágico. Porque eu me deparei com uma equipe de estudantes liderados por Glenda e por Ary. E foi assim que eu comecei no cinema. Estudando, fazendo diversas atividades. Quando comecei a fazer cinema, eu fazia a arte, a cenografia. A gente não só estudava teatro, mas o ofício do cinema, mesmo. Então, quando eu vi toda aquela mobilização da cidade, oficinas com moradores, tudo aquilo me cativou. Glenda e Ary, inclusive, montaram uma forma diferente de filmar. A gente fazia diurna e noturna no mesmo dia. E isso eles conseguiam captar o lugar. Não sei e foi proposital, mas foi algo de gênio. Em alguns momentos, eles conseguiam captar o som ao redor da cidade. Eles queriam muito que fosse uma história bem regional, mesmo. Acabou sendo algo mágico. E, depois, quando eu soube do resultado do filme nos festivais que ele participou, fiquei maravilhado. Porque, inclusive, eu ainda não assisti (risos). Eu vou ver agora em Tiradentes. Quando eles começaram a rodar os festivais com o filme finalizado, eu estava fazendo novela lá na Globo e não estava com agenda para poder viajar. Mas, agora, finalmente vou conseguir ver. Estou muito feliz com as pessoas terem ficado mexidas com esse trabalho de Glenda e de Ary. O roteiro escrito por ele mexeu muito comigo.

Seu personagem no roteiro de Ary Rosa se junta a outros recentes que você interpretou no cinema, como o pai de família Santana, em Mundo Cão, e o próprio Tim Maia, algo que acaba por lhe tirar de um estereótipo violento, inclusive.

Olha, preciso dizer que a coragem que o Ary teve na escrita desse roteiro foi linda. Quando ele resolveu quebrar esse estereotipo de personagens anteriores. Em me trazer para fazer um médico, um cara super seguro da própria identidade, sabe? Mais do que um homossexual, que eu acho que seja a última coisa do personagem, para mim é a construção de um homem sensível, um médico negro, da cidade do interior, com uma história tão bonita. E o mais importante é essa quebra  do estereotipo, que é algo que a gente precisa se acostumar. Porque o camarada quando senta lá pra estudar artes cênicas, ele está estudando para atuar. Eu não estou estudando para fazer um único tipo de personagem. Apesar de, claro,  gostar, também. Eu acho que esses tipos violentos, populares que eu faço, também precisam de uma representatividade. Mas, cara, eu não sei você, mas eu quando vejo nossa dramaturgia, principalmente televisão e cinema, eu me sinto em um país nórdico. E nós somos um país completamente miscigenado. É bacana ver na TV um casal de jovens bonitos. Mas eu também quero ver casais de velhinhos, quero ver o carinha gordinho com a menina magrinha e vice versa. O rapaz feio com a menina bonita e vice versa. Mas quando ligo a TV, eu me sinto pouco representado. Eu fico me sentindo em um comercial de pasta de dente, sabe? (risos) Então, para mim, um roteiro como o de Café com Canelo tem essa coragem de mostrar outras histórias. Porque todo mundo tem uma história a ser contada. Todo mundo tem que ser representado. A história de um todo, de um país do tamanho do nosso, precisa ser contada. E isso é um pouco que acontece com Café com Canela. Uma cidade do interior, do recôncavo baiano, tão rica culturalmente. Se você observar, nós somos um país muito grande e temos apenas dois pequenos eixos. E aí quando você sai desse eixo não só para contar, mas para produzir essa história, para mim é muito importante para ter esses novos olhares. Para que a gente possa evoluir até como mercado, como nação e como pensamento. 

Embate com Lázaro Ramos em Mundo Cão

Em 2018 você completa vinte anos como ator profissional.  Como foi esse caminho?

É, cara, exatamente esse ano, eu completo vinte anos como ator profissional. Minha primeira de teatro aqui no Rio foi em 1998. Chamava-se Abalou - Um Musical Funk. Para mim, essa coisa de homenagem vem como uma medalha, sabe? De uma luta que ainda é muito dura. Ainda é muito duro. A gente ainda não tem o nível de representatividade, o volume de trabalho que preciso. Algo que possa me trazer uma tranquilidade de vida. Eu até hoje estou na luta. Uma vez por mês chego a pensar em desistir (risos). Porque, olha...(pausa). Quando vem algo assim, uma homenagem? Brother...  Primeiro porque eu achei até que era mentira, que era alguém querendo pregar uma peça em mim (risos). Até porque eu não construí minha carreira pensando em ser homenageado. Eu só queria sobreviver daquilo que eu amo fazer.

Para você, qual o peso dessa homenagem em Tiradentes e o que representa para o futuro de sua carreira?

Quando um festival como o de Tiradentes vem  propõe uma homenagem como essa para mim, puxa, é como um tubo de oxigênio, sabe? Algo que vai me dar um gás para que eu possa um dia olhar para trás e ver uma carreira bacana. Mas não composta só por prêmios e homenagens, mas, sim, por fazer o que eu gosto, por sobreviver com o que eu gosto. Quando eu comecei a atuar, quando eu manifestei a vontade de ser ator, minha família ficou muito preocupada. Imagina só na década de 1990, sabe, a gente não tinha essas figuras que nos representassem. Que nos dava essa possibilidade de ter essa profissão. Era muito raro. A gente tinha quem? O Grande Otelo, que havia ficado lá atrás, o Milton (Gonçalves), o (Antônio) Pitanga, a dona Ruth (de Souza). E aquilo que essas pessoas alcançaram era pouco diante da grandeza delas, sabe? Então, eu lembro até hoje quando minha mãe chegava para mim e dizia: "Mas, filho, você vai ser ator, mas como é que você vai alimentar sua família?". Eu fui pai muito cedo. Eu tinha 22 anos quando minha filha, a Laura, nasceu. E inclusive, uma curiosidade: eu soube do nascimento da Laura justamente lá em Tiradentes. Eu estava fazendo um filme chamado Alegres Comadres e eu lembro que falei: "Olha, mãe, olha aí. Vai dar certo. Vai dar certo (enfático)". Essa homenagem me fez lembrar disso. Lembrar que eu quis ser ator para mostrar, para comunicar, para mostrar minha arte. E eu tenho feito. Tenho realizado cada vez mais sonhos. E, puxa, eu vou poder brindar toda essa luta lá em Minas. Para mim, toda vez que eu penso em homenagem, eu me emociono muito porque é uma luta muito dura, velho. É uma luta muito dura! E saber que as pessoas estão observando essa luta, saber que minha arte toca as pessoas a ponto delas quererem me homenagear, ou me premiar com alguma coisa, é um símbolo de vitória, sabe? E eu fico muito feliz. Fico muito emocionado, mesmo. Tudo na minha vida parece mágico. Essa homenagem vem do mesmo lugar onde eu estava quando soube do nascimento da minha primeira filha, o filme de abertura da Mostra, Café com Canela, vem do berço da minha família, então, brother, eu estou assim em êxtase. Eu estava até fazendo um dietazinha aqui para tirar o Tim Maia de vez de mim (risos), mas eu vou abrir uma  exceção em Tiradentes para tomar um pequeno porre para comemorar e ganhar um fôlego para mais trinta, quarenta anos de carreira, se Deus quiser.